20 julho 2011

António Fernandes Pinto, vendedor por conta própria

Estudo de um fresco para o Café Rialto, na cidade do Porto, por Guilherme Camarinha (1912-1994). O poeta cabo-verdiano Daniel Filipe foi frequentador habitual deste antigo café, hoje agência bancária. No Café Rialto reunia-se uma tertúlia literária que, além de Daniel Filipe, incluía Egito Gonçalves, Papiniano Carlos, Luís Veiga Leitão, Ernâni Melo Viana e António Rebordão Navarro. Este conjunto de autores editou, entre 1957 e 1961, nove cadernos de poesia a que deu o título de "Notícias do Bloqueio".

"Como qualquer pessoa, que se preza, também tenho o meu «café»: um desses enormes «cafés» do Porto, com paredes de espelhos e a nota requintada de uns murais de Dordio, Camarinha e Abel Salazar. Fica no centro – o que é norma, aliás, numa cidade que persistentemente se recusa a ter vida para além dos limites da Baixa. Da mesinha envergonhada, que é a nossa, vagamente perdida entre conversas de futebol e negócio, vão para toda a gente «notícias do bloqueio».

Pois foi nesse «café», igual a tantos outros, que vim a conhecer António Fernandes Pinto, vendedor por conta própria e assunto desta crónica. Que poderei dizer-vos dele? A idade? Doze anos. O talhe? Magro. O rosto? Triste. O drama? Um irmão na Tutoria, preso por atirar bombas nas festas de S. João. A mãe doente. A difícil conquista do pão de cada dia.

Podeis imaginá-lo, deveis imaginá-lo – vós que tendes casa, alegria, emprego, vitalidade, esperança. Imaginai-o vestido de azul desbotado – calças e blusa talhadas num velho «macaco» laboriosamente cerzido; imaginai-o iludindo o frio, envolto num casaco cinzento, que lhe chega aos joelhos. Imaginai, sobretudo, o seu puro e digno jeito comercial: o gesto, a um tempo, doce e sobranceiro de quem dá sempre alguma coisa em troca e não teme, por isso, a humilhação ou o aviltamento.

António Fernandes Pinto, vendedor por conta própria – que lhe pertence o conteúdo da pequena caixa de sapatos, a sua vitrine e armazém: minúsculo exemplo do que pode o Homem, do que vale o Homem. Nas nossas relações comerciais, nas discutidas transacções de pentes, atacadores e latas de pomada, sou eu sempre o devedor – embora pague o preço combinado. Mas creio, António, que apenas poderei saldar a minha dívida com a moeda que nenhum Banco aceitará – pois só tem curso no coração humano: o amor. É amando-te, e amando os meninos tristes, como tu, que eu e as outras pessoas crescidas poderemos, talvez, arrumar as nossas contas."

(Daniel Filipe (1925 – 1964), poeta e jornalista cabo-verdiano. In Discurso sobre a cidade (Editorial Presença, 1977), recolha de crónicas escritas por Daniel Filipe para o Diário Ilustrado, jornal que se publicou em Lisboa entre 1956 e 1963.)

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