05 setembro 2011

Dois poemas de Fernando Assis Pacheco sobre a Guerra Colonial

A MISSÃO DOS SETENTA E DOIS

(1)

E depois disto designou o comandante
ainda outros setenta e dois e mandou-os
em fila adiante de si
por todos os matos e morros
aonde ele devera ter ido.
E dizia-lhes: grande é na verdade
a guerra, poucos os homens.
Rogai pois ao dono da guerra
que mande homens
para a sua (dele dono) guerra.
Ide, e olhai, que eu vos mando
como lobos entre cordeiros.

Levai bornal, cantil, calçado
de lona e a ninguém saudeis
senão com fogo pelo caminho.
Na cabana aonde entrardes
dizei primeiro do que tudo:
guerra seja nesta casa;
e se ali houver algum
filho da guerra descerá
sobre ele a vossa guerra;
porque senão a guerra, a guerra, a guerra
vos enganará.

(2)

Voltaram mais tarde os setenta e dois
muito alegres
dizendo: senhor, até mesmo
os demónios se nos submetem
em virtude do teu nome.
E o comandante lhes volveu:
eu via cair do céu
a Satanás, como um relâmpago.
Dei-vos então o poder
de pisardes serpentes, e escorpiões,
e toda a força do inimigo;
e nada vos fará dano.

(3)

Digo-vos que naquele dia
haverá menos rigor para Sodoma
do que para tal povo.
E tu, Quinguengo, que te elevaste
até ao alto da mata
-- serás submergida até ao inferno.
Pois eu vos afirmo que foram
muitos os profetas e reis
que desejaram ver o que vós vedes, e não o viram;
e que desejaram ouvir o que vós ouvis
e não o ouviram.
Os PV-2 acertam sempre.

Avião de combate PV2 Harpoon (Foto: Silvério Fernandes Pinho)

MONÓLOGO E EXPLICAÇÃO

Mas não puxei atrás a culatra,
não limpei o óleo do cano,
dizem que a guerra mata: a minha
desfez-me logo à chegada.

Não houve pois cercos, balas
que demovessem este forçado.
Viram-no à mesa com grandes livros,
com grandes copos, grandes mãos aterradas.

Viram-no mijar à noite nas tábuas
ou nas poucas ervas meio rapadas.
Olhar os morros, como se entendesse
o seu torpor de terra plácida.

Folheando uns papéis que sobraram
lembra-se agora de haver muito frio.
Dizem que a guerra passa: esta minha
passou-me para os ossos e não sai.

Fernando Assis Pacheco (1937-1995), jornalista e poeta


NOTAS:

1 -- O muito frio de que fala Fernando Assis Pacheco, neste segundo poema, não é certamente para ser tomado à letra, pois a região dos Dembos não é fria. O poeta deve referir-se ao frio na alma.

2 -- Tal como Fernando Assis Pacheco, também eu fui mandado para a Guerra Colonial no cumprimento do serviço militar obrigatório. Estive em Angola com o posto de alferes miliciano. E tal como a Fernando Assis Pacheco, a mim também viram «com grandes livros, / com grandes copos, grandes mãos aterradas». Eu não li Ruy Belo, como ele fez, mas li Fernando Pessoa, Eça de Queirós, Soeiro Pereira Gomes, José Rodrigues Miguéis, Gabriel García Márquez e outros. Os livros, tal como a música, permitiram-me esquecer por momentos a guerra e conseguir manter um mínimo de lucidez no meio daquela insanidade.

3 -- A mim, não me me viram «mijar à noite nas tábuas / ou nas poucas ervas meio rapadas». À noite, eu era o último a deitar-me. Dominado por uma avalanche de pensamentos e de emoções, eu percorria incessantemente a parada do quartel, para trás e para a frente, fumando cigarros atrás de cigarros e tendo como única companhia as estrelas do céu e o ruído monótono do gerador, que alimentava a iluminação periférica do quartel do mato onde me encontrava. Pensava, por exemplo, em como tinha sido estúpido em me deixar cair na armadilha em que estava, de ter que fazer uma guerra que não desejava, contra um inimigo que não odiava, numa terra que não conhecia, para defender uma sociedade que se me tinha revelado incomparavelmente mais cruel e desumana do que tinha imaginado antes de partir para Angola.

4 -- Eu tive o privilégio único de comandar os melhores soldados do Mundo. Estou completamente convencido disto. Tenho diversas razões, bem reais e bem concretas, para assim pensar. Não as vou expor, porque seria longo e fastidioso, mas a verdade é que comandei os soldados mais valentes, sacrificados, esforçados, generosos e compassivos do Mundo. Mesmo. Negros, brancos e mestiços, sem exceção. A admiração que eu sentia por eles não tinha limites. Sentia-me capaz de dar a vida por eles, o que quase aconteceu.

5 -- Nas noites de insónia referidas acima, eu pensava, sobretudo, nos soldados que comandava e também nos seus pais e mães, nas suas esposas, nas suas namoradas, nos seus irmãos e em todos os outros familiares e amigos deles, que aguardavam ansiosamente que eles voltassem daquela guerra sãos e salvos. É certo que numa guerra há sempre mortos e feridos; eu sentia que isso era inevitável. Mas o que me angustiava mais era a possibilidade de algum dos meus heroicos subordinados perder a vida ou ficar mutilado por minha causa, por eu ter dado uma ordem errada ou por ter tomado uma decisão demasiado tardiamente, no decurso de uma operação militar. Nunca me perdoaria se tal viesse a acontecer. Os meus homens confiavam em mim e eu não podia trair esta confiança, acontecesse o que acontecesse. Apesar de só ter pouco mais de vinte anos de idade ou por isso mesmo, eu sentia sobre os meus ombros o peso esmagador das vidas humanas que me tinham sido confiadas. Era esta medonha responsabilidade que me tirava o sono.

6 -- Os meus superiores hierárquicos do quadro permanente eram indivíduos completamente insensíveis à morte e ao sofrimento alheios, desde que isso lhes permitisse subir na sua carreirazinha militar. Incapazes de correr os riscos inerentes à sua condição de profissionais da guerra, eles queriam por força ganhar medalhas e promoções à custa do heroísmo dos outros. Como eu invejava esta insensibilidade! Enquanto eu passava as noites a deambular pela parada, angustiado, eles dormiam tranquilamente o sono dos irresponsáveis. Que inveja!

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