24 fevereiro 2012

25 anos após a morte de Zeca Afonso


Eu confesso que estava distraído em relação ao 25º aniversário, ocorrido ontem, do falecimento de Zeca Afonso. Só de manhã, quando abri o jornal, é que me apercebi da efeméride. Infelizmente, não tive tempo, durante todo o dia, para poder aqui evocá-lo. Pedindo desculpa pelo atraso, aqui deixo finalmente a minha homenagem a essa figura de Português íntegro, corajoso e desassombrado que foi o Zeca.

A balada Menino do Bairro Negro, do Zeca Afonso, que me proponho dar a ouvir no vídeo em baixo, foi inspirada nas condições verdadeiramente trágicas em que viviam as crianças (e os adultos também, claro) da Ribeira e do Barredo, aqui na cidade do Porto. Quem hoje vai até à Ribeira, não consegue fazer a mais ínfima ideia de como aquilo era antes de 25 de abril de 1974. Não há palavras que sejam suficientemente eloquentes para descrever a miséria das gentes da Ribeira e do Barredo, vivendo em casas decrépitas, infestadas de ratos, piolhos e baratas, transformadas em cortiços onde cada quarto era habitado por uma família inteira. Milhares de pessoas vivam então naquele bairro nas condições mais insalubres e desumanas que se possam imaginar.

As ruas e vielas da Ribeira e do Barredo, pelas quais escorria toda a espécie de nauseabundas imundícies, atravessadas por gordas ratazanas e aonde nunca chegava o sol, eram o espaço, verdadeiramente indescritível, em que brincavam as crianças do bairro. Nem Dante Alighieri, na sua descrição do Inferno, feita na Divina Comédia, conseguiu retratar um ambiente tão putrefacto e repelente como o do Barredo e da Ribeira do Porto.

As condições eram tão más, que todos os técnicos de urbanismo e de arquitetura que tomavam conhecimento da situação defendiam a demolição total e absoluta de todo aquele espaço, por considerarem que ele era completamente irrecuperável. Propunham que, em seu lugar, se construísse um bairro moderno e arejado, que pudesse ser habitado por pessoas da média burguesia. Quanto aos habitantes existentes... não propunham nada, a não ser a sua expulsão pura e simples. Certamente para passarem a viver em barracos nos subúrbios ou algo assim. O povo da Ribeira e do Barredo era para eles um mero empecilho a um negócio que prometia ser chorudo.

Após a madrugada libertadora de 25 de Abril de 1974, a população da Ribeira e do Barredo começou a organizar-se e a exigir melhores condições de vida e de habitabilidade para si mesma, na própria Ribeira e no próprio Barredo, sem se demolir coisa nenhuma. Nasceu assim um movimento mais ou menos organizado, mais ou menos ad hoc. Este movimento acabou por envolver um conjunto de arquitetos da cidade, como Siza Vieira, Souto Moura e outros, que se propuseram colaborar com os moradores do bairro, por solidariedade e militância política. Estes arquitetos passaram portanto a trabalhar num projeto de recuperação do bairro, em estreita colaboração com a população, cujas opiniões escutavam em tumultuosas reuniões feitas após a hora do jantar, no salão nobre da Escola de Belas Artes do Porto.

E a recuperação do Bairro Negro cantado pelo Zeca acabou por fazer-se, embora viesse a ser bastante desvirtuada após o chamado "Verão Quente" de 1975. Mesmo assim, fez-se.

Repito: quem hoje passeia pela Ribeira do Porto e a acha muito bonita, não consegue fazer a mais pequena ideia de quão fétido e repelente aquele bairro era. A mudança foi verdadeiramente impressionante. Ela fez-se, graças às portas que Abril abriu e ao valioso contributo que o próprio Zeca Afonso deu, com as suas canções e com a sua luta, para que elas fossem abertas. Obrigado, Zeca.


Menino do Bairro Negro, por Zeca Afonso

Comentários: 1

Blogger dacordosdias escreveu...

Excelente texto e informação preciosa. É triste estarmos a caminhar de novo para estes tempos.

12 abril, 2014 13:51  

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