12 novembro 2013

Episódio de guerra

(Foto: mcbastos)

O CANCIONEIRO DO NIASSA

O alferes Gonçalves vai molhando a garganta entre as estrofes da canção, levando à boca a garrafa de litro da cerveja, sem deixar de balançar o corpo ao ritmo da guitarra manhosa do cabo Rosmaninho, dando a impressão que acompanha a canção com um instrumento de sopro, donde afinal só saem uns gorgolões sonoros de Cuca mal confeccionada.

A verdade é que nem o alferes tem uma boa voz, nem o cabo grandes unhas para a guitarra e aquela canção do Bob Dylan no português alfacinha do Gonçalves, ganha requebros de faduncho canalha; mas é o que temos de mais aparentado com a música.

Cada um de nós tem uma “bazuca” de Cuca à frente e a servir de bucha, um casqueiro e manteiga surripiados à dispensa do rancho geral.

O furriel vagomestre tem aqui, a difícil missão de não deixar morrer à fome os soldados, com os géneros que conseguirem sobreviver à rapacidade de todos os responsáveis pelo seu transporte, desde Lourenço Marques até lhe chegarem às mãos, em Mueda; não sem antes ele próprio retirar a sua maquia que, claro está, lhe cabe por direito, pois que se há alguma coisa que se aprende depressa na tropa, é que se formos tão escrupulosos que não nos apropriemos de nada que não nos seja devido, mas que nos esteja à mercê, é porque somos tansos, dado que somos os únicos a fazê-lo – num código de conduta a que damos o nome de desenrascanço.

O alferes Gonçalves e o cabo Rosmaninho desfiaram, pela ordem habitual, como se fosse um rosário, quase todas as canções do Cancioneiro do Niassa, essas canções populares com letras adaptadas, que vão do brejeiro ao revolucionário e onde se carpem as dores e se faz a catarse da raiva contida dos combatentes, sob a complacência magnânima dos comandos militares, que por vezes até assistem divertidos aos serões e tainadas. Complacência que a mim me sabe a uma espécie de concessão da última vontade aos condenados à morte. Quando a miséria não é extrema, o vagomestre ainda arranja algo de mais substancial, mas hoje temos que nos sentir felizes por aquele casqueiro cheio de gorgulho e larvas cozidas, que, aqui em Mueda, à medida que o tempo vai passando e a nossa repugnância vai diminuindo, vão perdendo a reputação de porcaria para ganharem o estatuto de recheio, em jeito de boroa merendeira da minha aldeia.

O meu analfabetismo musical só me permite abanar a cabeça e bater umas palmadas nas coxas a dar a ideia que comungo do espírito de grupo, mas não me atrevo a engrossar o coro que diz “Estou farto deles, estou farto deles; só mandam vir e não fazem nada”, com a minha voz que levou o padre de canto coral do colégio de Anadia, num acto desesperado de impotência, a propor-me fazer, pelo menos de vez em quando, gazeta às aulas.

Quando a música das diferentes canções já nos parece a todos a mesma e a guitarra do cabo Rosmaninho não consegue ir além de um doloroso latir de animal ferido, está na hora da cachaça da sossega. A garrafa da cirrose a haver, aparece repentinamente em cima da mesa, pronta para uma geral com despudores convidativos de prostituta.

Ou é do álcool ou a Lua está linda hoje e surpreendentemente a minha voz de falsete esganiçado parece até nem destoar muito das outras. De repente a noite ganha encantos boémios de fim de festa, enquanto gritamos a plenos pulmões: “Estou farto deles, estou farto deles; só mandam vir e não fazem nada”, dado que a versão original, “Eles comem tudo e não deixam nada”, seria aqui, em bom rigor, até um pouco injusta.

Separamo-nos à saída da arrecadação, onde decorreu o nosso banquete de casqueiro, manteiga, cerveja e cachaça. Os outros vão-se calando à medida que se encontram sozinhos na noite, mas eu sinto-me inesperadamente confiante nos meus dotes canoros e continuo a repetir o estribilho vezes sem conta.

Entro assim na flat, fazendo as despesas da festa sozinho e os olhares dos meus companheiros de quarto pousam em mim com um ar de desgosto que eu atribuo à minha crónica inaptidão musical; mas quando repito – O que foi? O que foi? ofendido com tanta insensibilidade, as três palavras que me atiram como resposta, dão-me volta ao estômago e fazem-me cair de joelhos num vómito de enjoo, raiva e dor: – O furriel Camões.

Estas frases não precisam de verbos, aqui, quando se diz o nome de alguém entre dois silêncios só perguntamos “Uma mina?”, “Um tiro?” – Foi um fornilho.

Acabo de curtir a bebedeira aos pontapés a um bidão, enquanto grito a plenos pulmões que “estou farto deles, estou farto deles” já sem qualquer vestígio da música do Zeca Afonso.

mcbastos, associado n.º 1312 da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, in Jornal ELO, abril de 2006


NOTAS

 1 — Na terminologia militar, um fornilho é uma mina terrestre reforçada. A mina tanto pode ser antipessoal como anticarro. O reforço, destinado a aumentar o poder letal da mina, pode ser constituído por granadas (de mão, de morteiro, de obus, granadas-foguete, etc.), cacos de vidro, fragmentos de metal, cordão detonante envolvendo conjuntamente a mina e as granadas, etc.

2 — A expressão Estou farto deles era uma frase muito corrente no seio da tropa portuguesa e referia-se aos militares do quadro permanente, em geral, e às chefias militares, em particular.



Explosão de um fornilho (Foto de autor desconhecido, encontrada em CCAV 2415)

Comentários: 5

Blogger Um Jeito Manso escreveu...

Gostei muito de ler. Parece eu que estava lá a assistir. As memórias de uma situação dessas (e não me refiro apenas ao episódio que relata) devem ser de uma imensidade tal que jamais se esbaterão. É uma outra vida que deve continuar viva dentro de quem a viveu tal o excesso de emoções que a todo o momento deveriam estar presentes.

E a descrição que fez sabe demonstrar muito bem tudo isso, lê-se e fica-se com vontade que vá continuando a contar-nos mais momentos dos que por lá passou.



15 novembro, 2013 08:52  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Cara "Um Jeito Manso", este texto não é meu! É de um deficiente das Forças Armadas, chamado Manuel Correia de Bastos, que esteve em Mueda, no norte de Moçambique. Eu estive no norte de Angola, onde combati a UPA/FNLA, e não sou deficiente, felizmente, apesar das situações complicadas em que me vi envolvido.

Há bastantes meses descobri um blog dele, chamado Cacimbo, e fiquei logo "assinante" do blog através do serviço Bloglines. Além de terem uma qualidade literária acima da média, os textos dele têm uma outra qualidade — densidade humana — que quase nunca se encontra em textos sobre a guerra colonial, seja sob a forma de livros impressos, seja na internet. Exemplo disto, por exemplo, é um dos seus mais recentes posts e que a aconselho a ler aqui.

Talvez ele tenha publicado livros; pelo menos um, em que conte a sua experiência pessoal da guerra. Tenho que procurar.

15 novembro, 2013 18:23  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Acabei de acrescentar umas aspas em tamanho grande ao post, para que fique claro que o texto não é meu.

15 novembro, 2013 23:32  
Blogger Um Jeito Manso escreveu...

Tem razão, peço desculpa. Não reparei nas aspas e se vi a indicação de mcbastos no fim do texto tenho ideia que relacionei com a indicação da autoria da foto.

Vou ler o texto dele que refere pois a verdade é que escreve de uma forma muito autêntica, muito vivida e muito sentida.

De qualquer maneira, fico contente que as marcas que lhe ficaram da guerra não sejam físicas (e espero que as outras não sejam excessivamente penalizantes e, pelo contrário, que haja outras que sejam agradáveis).

Uma vez mais, desculpe a minha confusão.

Desejo-lhe um bom fim de semana.

16 novembro, 2013 02:25  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Cara "Um Jeito Manso", acabei por não ficar com marcas, nem físicas nem psíquicas. A sério. Quando faltavam poucos meses para o fim da minha comissão militar, o meu equilíbrio mental degradou-se de tal maneira que o médico do batalhão me mandou à consulta de psiquiatria, em Luanda. Fiz tratamento em regime ambulatório (se tivesse sido internado, teria ficado louco furioso; aquilo lá dentro era tão mau, tão mau, que em comparação os campos de concentração nazis deviam parecer colónias de férias) e melhorei espetacularmente. A mim, o que me valeu foi ter sido tratado a tempo, enquanto ainda estava "quente".

A mesma sorte não teve um camarada meu, que fez muitas operações militares comigo. Esse meu camarada regressou aparentemente bem, do ponto de vista psíquico, mas uma vez cá chegado manifestou o que parecia ser uma inadaptação à vida civil. Mas não era inadaptação nenhuma. Era muito pior. Na última vez que o vi (por volta de 1979), cheguei a recear que ele pensasse em suicidar-se! Voltei a ter notícias dele há três anos. Disseram-me que estava vivo e que era trabalhador rural numa aldeia em Trás-os-Montes. É duro saber que alguém que chegou a frequentar a Faculdade de Economia do Porto é agora um simples assalariado agrícola, como se tivesse apenas a quarta classe. Já fui à região de Trás-os-Montes onde me disseram que ele estaria a viver, mas não consegui encontrá-lo nem encontrei quem o conhecesse.

17 novembro, 2013 23:34  

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