10 dezembro 2013

Cantigas de amor do rei D. Dinis

Verso e reverso do muito danificado Pergaminho Sharrer, contendo sete cantigas de amor do rei D. Dinis, incluindo a música. Uma desastrada tentativa de restauro deste pergaminho em 1993 ainda o deixou mais estragado do que já estava!


O rei D. Dinis (1261-1325) foi um dos monarcas mais importantes de toda a história de Portugal. Culto e letrado, ele deixou uma marca indelével nos mais variados campos da governação. Não contente com isso, D. Dinis foi também um notável trovador, à semelhança, aliás, do seu avô materno, que foi Afonso X, rei de Leão e Castela (1221-1284), cognominado "O Sábio".

Presentemente, conhecem-se 137 poemas escritos por D. Dinis: 73 cantigas de amor, 51 cantigas de amigo e 10 cantigas de escárnio e maldizer. Não é por acaso que estes poemas se chamam cantigas. Chamam-se cantigas porque foram escritos para serem cantados. Mas até ao ano de 1990 não se conhecia a música correspondente a nenhum deles. Por isso, quando se pretendia cantar uma das cantigas do rei-trovador, adaptava-se-lhe a música de um outro autor seu contemporâneo.

Habitualmente, adaptava-se uma das seis músicas conhecidas do jogral galego Martim Codax, o celebrado cantor das Ondas do Mar de Vigo, que constam do chamado Pergaminho Vindel. Martim Codax foi mais ou menos contemporâneo de D. Dinis, escreveu em galaico-português, tal como D. Dinis o fez, e as suas cantigas abordam assuntos profanos, assim como as de D. Dinis.

Um outro trovador, de quem se tem adaptado a música para fazer o acompanhamento das cantigas de D. Dinis, foi o seu avô Afonso X, que, apesar de ser leonês e castelhano, também escreveu os seus poemas em galaico-português. Além de 44 cantigas de escárnio e maldizer e também de amor, conhecem-se de Afonso X nada mais nada menos do que 430 cantigas dedicadas à Virgem, chamadas Cantigas de Santa Maria, incluindo a sua música. Apesar de ter um cariz religioso, alguma desta música também tem sido adaptada a cantigas de D. Dinis.

Em 1990, um investigador norte-americano, chamado Harvey L. Sharrer, descobriu no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, um pergaminho contendo sete cantigas de amor de D. Dinis, acompanhadas pela respetiva música. Infelizmente, este pergaminho, que passou a ser chamado Pergaminho Sharrer, estava muito danificado, pois tinha sido usado na encadernação de um livro de registos notariais do séc. XVI. De qualquer modo, tornou-se possível (finalmente!) conhecer alguma da música que D. Dinis compôs para as suas cantigas, senão de uma forma integral, dado o mau estado do pergaminho, pelo menos de uma forma bastante aproximada.

As cantigas de amor que constam do Pergaminho Sharrer são as seguintes:

— Poys que vos Deus, amigo, quer guisar

— A tal estado me adusse, senhor

— O que vos nunca cuidei a dizer

— Que mui grão prazer que eu hei, senhor

— Senhor fremosa, no posso eu osmar

— Não sei como me salva a minha senhor

— Quis bem amigos, e quero e querrei

Alguns grupos e intérpretes que se dedicam à divulgação da música antiga têm vindo a gravar as cantigas de D. Dinis pertencentes ao Pergaminho Sharrer, na totalidade ou só algumas. É o caso do grupo que se pode ouvir nos dois vídeos que se seguem e que é o Grupo de Música Antiga Meendinho, da Galiza, tendo como solista a meio-soprano polaca Paulina Ceremużyńska.




O que vos nunca cuidei a dizer,
com gram coita, senhor, vo-lo direi,
porque me vejo já por vós morrer;
ca sabedes que nunca vos falei
de como me matava voss'amor;
ca sabe Deus bem que doutra senhor,
que eu nom havia, mi vos chamei.

E tod[o] aquesto mi fez fazer
o mui gram medo que eu de vós hei
e des i por vos dar a entender
que por outra morria — de que hei,
bem sabedes, mui pequeno pavor;
e des oimais, fremosa mia senhor,
se me matardes, bem vo-lo busquei.

E creede que haverei prazer
de me matardes, pois eu certo sei
que esso pouco que hei de viver
que num prazer nunca veerei;
e porque sõo desto sabedor,
se mi quiserdes dar morte, senhor,
por gram mercee vo-lo [eu] terrei.




A tal estado mi adusse, senhor,
o vosso bem e vosso parecer
que nom vejo de mi nem d'al prazer,
nem veerei já, enquant'eu vivo for,
u nom vir vós que eu por meu mal vi.

E queria mia mort'e nom mi vem,
senhor, porque tamanh'é o meu mal
que nom vejo prazer de mim nem d'al,
nem veerei já, esto creede bem,
u nom vir vós que eu por meu mal vi.

E pois meu feito, senhor, assi é,
querria já mia morte, pois que nom
vejo de mi nem d'al nulha sazom
prazer, nem veerei já, per bõa fé,
u nom vir vós que eu por meu mal vi;

pois nom havedes mercee de mi.


Estas interpretações e algumas outras, nomeadamente as do barítono inglês Paul Hillier e do seu grupo Theatre of Voices, juntamente com os poemas correspondentes e as pautas musicais resultantes da transcrição feita por Manuel Pedro Ferreira, podem ser escutadas a partir do seguinte endereço: http://cantigas.fcsh.unl.pt/pergaminhosharrer.asp.


NOTA:
A tal estado mi adusse - A tal estado me trouxe


Comentários: 9

Blogger Um Jeito Manso escreveu...

Sabe? Quando leio textos como este seu, textos documentados e ilustrados com imagens e sons, ocorre-me pensar como era limitada a nossa vida antes de haver internet e esta facilidade de cada um partilhar os seus conhecimentos, as suas aprendizagens, os seus gostos.

Uma maravilha este seu post. Parabéns. E, claro, obrigada.

10 dezembro, 2013 23:23  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Muito obrigado eu, cara "Um Jeito Manso". Não é todos os dias que se recebem umas palavras assim...

Subscrevo o que escreveu a respeito da internet. Até custa a acreditar que era possível viver sem ela... No meu caso, antigamente, era a rádio em ondas curtas que mais me informava e me ensinava. Muito mais do que a televisão ou do que a imprensa escrita (exceto os livros, claro!).

Agora, as ondas curtas estão agonizantes. Quase só se ouvem estações religiosas americanas, a Rádio Pequim e poucas mais. Mas até há alguns anos, talvez como afirmação de prestígio internacional, as principais estações de rádio contratavam os melhores profissionais que pudessem encontrar para fazerem as suas emissões em ondas curtas. Era nas ondas curtas que se ouviam os melhores programas de rádio, sem a mais pequena sombra de dúvida. Atualmente, já nem a BBC (que já não transmite em português nem nada) é o que era.

12 dezembro, 2013 03:27  
Blogger Unknown escreveu...

Saudações Fernando!

Sei que a matéria é antiga, mas se tratando de D. Dinis nada fica só no passado...

E como todos os anos fazemos referência a esse grande Rei pela sua vasta e significativa cultura, em buscas encontrei algumas belas explanações, inclusive a sua. E em comemoração a ele no último dia 09, gostaria de compartilhar uma bela poesia criada pelo nosso autor brasileiro em homenagem ao grande Rei Trovador. End: https://silolirico.blogspot.com.br/2016/10/hoje-e-dia-de-don-dinis-o-rei-trovador.html

Um abraço! Sandra

13 outubro, 2016 00:24  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Saudações, Sandra. Na verdade, o poema que refere não se limita a homenagear apenas o rei D. Dinis. Aproveita para homenagear vários outros poetas portugueses, dos mais notáveis de sempre. Muito obrigado.

13 outubro, 2016 02:36  
Blogger Toni Ferreira escreveu...

Algo de raro são essas canções que retratam amores antigos e raridades de nossa Língua Portuguesa cantada.

28 fevereiro, 2017 21:03  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Prezado Antonio Ferreira de Carvalho, muito obrigado pelo seu comentário. Na Idade Média, o idioma galaico-português, do qual nasceram o galego e o português modernos, teve uma grande importância para a música trovadoresca na Europa. Para ser mais preciso, o galaico-português foi a segunda língua mais usada pelos trovadores europeus nas suas cantigas, a seguir ao occitano, falado no sul de França.

01 março, 2017 03:47  
Blogger Unknown escreveu...

Fernando,muito difícil encontrar a história da cantiga de amor (para quem foi feita e época)
O que voz nunca cuidei a dizer
Sabe me responder?
Obrigada e parabéns!

26 março, 2018 01:37  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Cara "Unknown", duvido seriamente que alguém saiba para quem foi feita a cantiga de amor "O que vos nunca cuidei a dizer", de D. Dinis. Embora tenha sido escrita por um homem (ainda por cima rei), a cantiga referida (assim como muitas outras cantigas de amor e de amigo da mesma época) surge como tendo sido escrita por uma mulher. É um fenómeno comum na poesia medieval esta inversão de papéis, em que um bardo ou trovador cantava como se fosse uma mulher exprimindo o seu amor por um cavaleiro. A época em que a cantiga foi escrita é, evidentemente, a época em que viveu D. Dinis, isto é, a transição do séc. XIII para o séc. XIV. Estas cantigas têm, portanto, cerca de 700 anos.

26 março, 2018 17:47  
Blogger Unknown escreveu...

Caro Fernando: vim parar no seu blog ao procurar entender porque uma certa conta não fecha... São 137 cantigas que chegaram até nós, certo? Por toda parte são divididas em generos, 73 disso, 51 daquilo e 10 daquil'outro. O resultado é 134, não 137! Que é feito das outras três cantigas? Não se encaixam em nenhum dos três generos?

25 junho, 2018 02:13  

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