01 maio 2015

O operário em construção


E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo: — Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe: — Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás (Lucas, cap. IV, versículos 5–8).

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as asas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato como podia
Um operário em construção
Compreender porque um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento

Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse eventualmente
Um operário em construcão.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma subita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
— Garrafa, prato, facão
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Nao sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua propria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro dessa compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele nao cresceu em vão
Pois além do que sabia
— Excercer a profissão —
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edificio em construção
Que sempre dizia "sim"
Começou a dizer "não"
E aprendeu a notar coisas
A que nao dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uisque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era a amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução

Como era de se esperar
As bocas da delação
Comecaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação.
— "Convençam-no" do contrário
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isto sorria.

Dia seguinte o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu por destinado
Sua primeira agressão
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
— Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse e fitou o operário
Que olhava e refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria
O operário via casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

— Loucura! — gritou o patrão
Nao vês o que te dou eu?
— Mentira! — disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martirios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construido
O operário em construção

Vinicius de Moraes (1913-1980), «poeta e diplomata, o branco mais preto do Brasil na linha direta de Xangô»



Cena do filme Tempos Modernos, de Charlie Chaplin

Comentários: 4

Anonymous Vitor escreveu...

Belíssima homenagem ao dia de Hoje !
Melhores Cumprimentos.

Vitor Manuel

01 maio, 2015 11:23  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Muito obrigado pela sua visita e pelo seu comentário, caro Vitor Manuel. Volte e intervenha sempre que entender.

01 maio, 2015 23:34  
Anonymous Vitor escreveu...

Obrigado eu, Caro Fernando Ribeiro, pela gentileza e favor do seu Comentário e convite .
Após conhecimento do seu Magnífico blogue, ( por intermédio da nossa estimada " UJM "), tenho-me demorado pelo seu belo Arquivo .
Não lhe solicitei permissão ( do que peço desculpa ) mas tenho reenviado textos seus para meu Cunhado e dois dos meus Melhores Amigos .
Revejo-me em muitos dos textos do seu eclético e Fino blogue especialmente aqueles que recordam a sua vivência ( e a dos nossos queridos Ex-Camaradas )na Guerra Colonial, em Angola.
Comovido e nostálgico , por exemplo, quando referencia os " seus Homens" e Irmãos , em Combate,oriundos do " RI 22 " do Lubango onde prestei Serviço Militar, obrigatório, por grande parte da minha Comissão Militar, naquela Bela e Saudosa Angola.
Acresce, sêr casado , há 43 Anos com uma " Chicoronha " .
Voltaremos, por certo e aproveitando o seu amavel convite, a " encontrar-nos " agora que passou a sêr um dos meus " Favoritos ".
Fraterno Abraço.

Vitor Manuel

02 maio, 2015 17:24  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Caro Vitor Manuel,

Eu procuro fazer um blog que seja tão diversificado quanto possível, partilhando os muitos assuntos que conseguem despertar a minha curiosidade e o meu interesse. Também procuro ser tão rigoroso quanto possível em tudo o que publico, o que talvez seja um reflexo da minha formação académica na área das Ciências Exatas e da Engenharia. Se eu consigo agradar aos meus visitantes ou não, é a eles que cabe formar a sua opinião. Pela parte que me toca, fico muito sensibilizado com as suas amáveis palavras. Ainda bem que este blog lhe agrada, porque também já recebi alguns insultos...

Os assuntos que abordo aqui são públicos. Não procuro restringir a sua partilha por quem quer que seja, nem exijo ter um conhecimento prévio dessa partilha. A partir do momento em que os disponibilizo na Internet, deixo de ter controlo sobre eles. Só espero que me corrijam se encontrarem alguma inexatidão.

Um grande abraço

03 maio, 2015 01:08  

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