13 fevereiro 2018

Os caretos de Lazarim



As comunidades rurais possuem um conjunto de saberes e de práticas que pretendem preservar e transmitir às gerações futuras, como património cultural e identitário. A vila de Lazarim, no concelho de Lamego, Norte de Portugal, encontrou no Carnaval um tempo de excepção para afirmar a sua identidade cultural, recuperando os ritos, os símbolos e os textos associados às festas de Inverno. A partir de 1985 as práticas carnavalescas foram institucionalizadas, num modelo performativo que procura mostrar a tradição local ao mundo global. (…)

O Carnaval constitui um sistema simbólico associado à transição do Inverno para a Primavera, do velho para o novo, da morte para a vida, do frio para o calor, da parte masculina para a parte feminina do universo, reunindo diversos significados que assinalam este ciclo na vida das comunidades rurais. Um ciclo de renovação cósmica e social, tempo de utopia e transgressão, onde tudo o que é socialmente marginalizado busca uma libertação catártica, vencendo simbolicamente a hierarquia, a ordem, a opressão, e o sagrado. (…)

Em Lazarim, três gerações de artesãos, com diferentes expressões artísticas, transfiguram um tronco de amieiro, árvore que nasce nas margens do rio Varosa, em figuras representativas da tradição local. Cada um destes homens regista simbolicamente nas suas máscaras, o seu universo cultural e o seu imaginário. (…)

Os Caretos de Lazarim exibem através das suas máscaras representações de figuras históricas como bispos, reis e romanos, de figuras místicas como bruxas e diabos, de figuras grotescas, e ainda figuras de animais, como o burro, a corsa, o mocho e o porco. (…)

Os Caretos completam a máscara com outros elementos de vestuário, como fatos confeccionados de palha, ou de barba de milho entrançado, capas vermelhas ou negras com debruados. Na mão, transportam quase sempre um objecto de uso agrícola, como uma enxada ou uma forquilha, havendo alguns que usam um cajado de nogueira, que nos remetem para o sistema simbólico do mundo rural. (…)


(…) O início do ritual é sinalizado pelo ribombar dos foguetes às três horas da tarde de terça-feira gorda. No Largo do Padrão começam a afluir os primeiros Caretos, lançando farinha e jactos de água sobre os forasteiros e os locais. Os forasteiros respondem com disparo de câmaras fotográficas, tentando registar tudo aquilo que foi anunciado como tradicional. No Largo da Casa do Povo, homens e mulheres preparam “ o banquete”, a confecção da feijoada, em grandes panelas de ferro, que no final do ritual será partilhada pelos visitantes e locais. Os homens carregam lenha, ateando o fogo, e as mulheres aprontam os ingredientes da feijoada, composta de feijão branco, enchidos, entrecosto e orelha de porco. No centro da Vila, outro grupo de mulheres prepara o caldo de farinha, composto de farinha de milho, couves e enchidos de porco, que têm a mesma finalidade, a de serem consumidos depois do ritual do testamento. Entretanto, soam as primeiras batidas dos bombos que ecoam no Largo do Padrão. O grupo de tocadores é constituído por quatro elementos, um par de bombos e um par de caixas que vão percorrendo as ruas de Lazarim, seguidos pelos Caretos, nas suas inocentes tropelias, e pelos representantes dos grupos das Comadres e dos Compadres. O cortejo vai até ao lugar de Valverde, onde o Sr. Hélio Fernandes, artesão dos bonecos carnavalescos, lhes entrega uma espécie de andor, com a mascote do grupo de género, um boneco, para o grupo das Comadres e uma boneca, para o grupo dos Compadres, feitos de papel colorido com uma instalação pirotécnica. (…)

O cortejo atravessa a vila, desde Valverde até ao Padrão, e os participantes concentram-se no Largo da antiga Casa do Povo. Os Caretos dançam ao som dos bombos e caixas, em volta da fogueira onde se cozinha a feijoada, enquanto os Compadres e as Comadres se concentram no cimo das escadas da Casa do Povo. (…)

O grupo das Comadres e dos Compadres são representados por duas raparigas e por dois rapazes, solteiros. Um representante de cada grupo será escolhido para leitor do testamento, e o outro, transporta a mascote; o boneco simbolizando o Compadre e a boneca simbolizando a Comadre. O significado atribuído à representação dos géneros, através da figura dos bonecos, é particularmente relevante, na medida em que as cores das suas roupas e adornos são de uma exuberância que contrasta com o vestuário comum dos membros da comunidade. (…)

A ordem que assinala o início do ritual é dada pelos bombos, organizando-se um novo cortejo até ao Largo do Padrão, onde serão lidos os testamentos da Comadre e do Compadre. Os Caretos seguem à frente, seguidos dos representantes dos grupos, e por fim os tocadores e os acompanhantes, população e forasteiros. (…)

No Largo do Padrão foi montado um palco improvisado, onde os Compadres e as Comadres tomam os seus lugares dando início à leitura dos testamentos. O texto do testamento é composto por três partes; a introdução, composta por quadras alusivas ao ciclo do Carnaval e pela identificação da(o) testamenteira(o); as “deixadas” ou quadras dedicadas a todos os rapazes e raparigas solteiras e o final, alusivo ao fim da Comadre e do Compadre, anunciando a morte e rebentamento pelo fogo.
Com a fome que trazeis
Passais a vida a ladrar
Comeis a burra inteirinha
Nem a rata vai escapar.

Para manter a tradição
E o Carnaval não findar
Vamos repartir a burra
Para a boca vos calar.
O final de cada verso é sempre sinalizado com o rufar dos bombos. O texto é sarcástico, jocoso e vernáculo, recorrendo ao uso de alguns palavrões e abordando sobretudo os defeitos de carácter e de comportamento, tendo como acentuação a vertente sexual. (…)

O texto dos Compadres acentua igualmente os defeitos de carácter e os comportamentos das raparigas, mas tem mais incidência nos aspectos da vida sexual, utilizando uma linguagem mais jocosa, recorrendo ao uso de palavrões e dando-lhe uma forma mais grotesca do que o das Comadres, mas essa construção verbal é construída conscientemente.
Como já estavam há espera
Está cá o fanfarrão
Para dar carninha a todas
E manter a tradição.

A todas vamos dar carne
Pois é isso que elas querem
Não importa de quem seja
Consolar-se elas preferem.
Os testamentos carnavalescos no uso de linguagem jocosa, nas injúrias e nos palavrões, que constituem as “deixadas”, remetem sempre para um paralelismo entre as características do beneficiário e o objecto de partilha. Para os nossos informantes o significado deste ritual é “mais um gladiar entre homens e mulheres”, elegendo como bem de partilha, o burro e a burra, num paralelismo masculino/feminino que acentua as relações sociais e simbólicas entre pares de opostos. A figura do animal parece adquirir um duplo significado: o de símbolo bíblico da humilhação e da docilidade e, a do corpo grotesco cómico decepado, quando valorizadas as partes sexuais, objecto de partilha.
É o Paulo já se vê,
Vai repartir a burrinha,
Fica com a melhor parte,
Essa será a ratinha.


A audiência, composta por pessoas de vários grupos etários, reage pelo riso ao desfilar dos versos, contrastando com a postura séria dos leitores. Os grupos de rapazes e raparigas vão partilhando entre si cumplicidades através da troca de olhares. Também é possível observar que o testamento dos Compadres provoca quase sempre mais gargalhadas na assistência que o das Comadres. (…) Após a leitura dos textos é organizado um cortejo, durante o qual a solenidade e contenção são assumidas pelos participantes que se dirigem para o sítio da Cruzinha, em Valverde, onde os bonecos serão consumidos pelo fogo. Os Caretos tomam a dianteira, seguidos dos Compadres e das Comadres. Os tocadores impõem uma batida lenta e compassada, como num cortejo fúnebre, seguidos pela população local e pelos forasteiros.

No lugar da Cruzinha, em Valverde, os bonecos armadilhados por efeitos pirotécnicos, vão rodopiando, produzindo ruído e chamas acompanhadas de sucessivas explosões e batidas dos tocadores, até ao estoiro final, provocando na assistência, sobretudo nas crianças, uma enorme alegria e algazarra que perduram na memória. (…)

Em Lazarim a imolação dos bonecos assinala o término do ritual da festa carnavalesca, seguindo-se-lhe o “banquete”, espaço de confraternização entre os membros da comunidade e os forasteiros, através da comensalidade. O rito de passagem está concluído, mas o processo de reinvenção da tradição inseriu novos elementos à festa, o concurso de máscaras. O concurso é organizado pela Casa do Povo para premiar e incentivar os artesãos de máscaras de madeira, e manter a continuidade e a tradição. Este é um dos momentos da festa em que a audiência é essencialmente composta pelos membros da comunidade, artesãos e seus familiares. O júri do concurso é constituído por pessoas convidadas, exteriores à comunidade. Os prémios atribuídos contemplam a melhor máscara no seu conjunto (fato e máscara), a melhor máscara de madeira, a primeira máscara, e prémios de participação, como incentivo e reconhecimento pelo trabalho desenvolvido. Durante o concurso a maior parte dos visitantes dispersa-se pelos lugares onde são oferecidos os “banquetes”.

No Largo da Vila saboreia-se o caldo de farinha, e no Largo da Casa do Povo a feijoada. A história a que remete a origem do banquete comunitário celebra a abundância do grupo social, de tal forma que se permitem a convidar os vizinhos e os forasteiros para o seu banquete. (…) o Carnaval de Lazarim remete-nos para um contexto rural de formação cristã, e o seu ritual para uma pândega libertadora, onde rapazes e raparigas cumprem o seu papel de herdeiros de uma paródia burlesca. (…)

Dulce Simões, in Carnaval em Lazarim: Máscaras, Testamentos e Práticas Carnavalescas

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